CRISTIANE SEGATTO
- 09/11/2012 16h36
"É cebola? Rabanete?
Abacate?"
Quando alguém
aponta os malefícios da fast food, das bebidas açucaradas e dos biscoitos
artificialmente coloridos e perfumados, nossa primeira reação é pensar que está
difícil ser feliz nesse mundo patrulhado pelo politicamente correto. Há quem
diga que se sente inibido de oferecer um simples chocolate ao filho em lugares
públicos. Acredita que em pouco tempo o agrado poderá ser interpretado como
tentativa de infanticídio e dar cadeia.
Nessa discussão, o
radicalismo não ajuda. Seja ele politicamente correto ou incorreto. Toda
criança deveria ser livre para comer um chocolate, um pirulito, um sorvete, um
hambúrguer com batata frita de vez em quando. Desde que fosse, realmente, de
vez em quando.
Na minha infância
era assim: comida caseira a semana inteira. Suco de laranja, limão ou outra
fruta espremida na hora. Água o dia todo. Nos finais de semana, uma coisa
“diferente”. O “diferente” era uma garrafa de refrigerante dividida pela
família toda no almoço de domingo, um pote pequeno de sorvete de sobremesa; um
algodão doce ou uma maçã do amor no passeio ao zoológico.
Hoje o “diferente”
é a comida de todos os dias, de todas as horas. Essa mudança cultural recente
(provocada por várias razões, principalmente comerciais) é a causa da maior
epidemia infantil da história: a epidemia de obesidade.
Uma excelente
contribuição para enriquecer o debate é o documentário "Muito Além do Peso", que
chega aos cinemas na próxima semana. O filme dirigido por Estela Renner,
produzido por Marcos Nisti e patrocinado pelo Instituto Alana, uma ONG que
defende o bem-estar infantil, é uma investigação profunda do impacto da
obesidade infantil na vida das famílias brasileiras.
Entre a produção
do documentário e as pesquisas, Estela e sua equipe consumiram mais de dois
anos. Percorreram o Brasil de norte a sul, leste a oeste. Entraram nas grandes
cidades e nos pequenos municípios. Foram a comunidades rurais e a aldeias
indígenas. Às casas de classe média baixa e aos apartamentos confortáveis dos
grandes centros urbanos.
Numa das mais
belas praias cariocas, uma menina pega um pimentão verde, revira o legume como
se visse aquela forma estranha pela primeira vez e arrisca dizer o nome dele:
- Rabanete?
Quando o teste é feito
com uma berinjela, a aposta é a mesma.
- Rabanete?
- Rabanete?
Numa outra cidade,
um garoto de classe média alta pega um mamão, vira a fruta de um lado para
outro e dá o palpite:
- Abacate?
- Abacate?
Quando examina uma
ameixa bonita e suculenta, diz:
- Manga?
Eles não são
exceção. A surpresa das crianças diante das frutas e legumes mais banais se
repete em várias regiões do país. Mandioquinha, abobrinha, chuchu,
beterraba...Todos ilustres desconhecidos
A obesidade avança
pelo país de forma dramática. Mais de um terço das crianças brasileiras (33,5%)
tem sobrepeso e obesidade. O principal mérito do filme é apontar uma questão
urgente, muitas vezes subestimada, e comprovar que a epidemia se instalou em
lugares aonde ninguém chega – nem governo, nem sociedade organizada, nem
formadores de opinião.
Por causa da
obesidade, a atual geração de crianças pode se tornar a primeira na história a
viver menos que os pais. Vários estudos de saúde pública realizados nos Estados
Unidos e em outros países têm demonstrado isso. Esqueça os ganhos de
longevidade comemorados nos últimos anos e a expectativa de ter uma grande
parcela da população vivendo bem aos 100 anos. A obesidade está devorando o
excesso de otimismo.
Essa projeção, que
pode parecer exagerada, torna-se palpável em algumas cenas do filme. Crianças
de 9 ou 10 anos vivem como velhos, imóveis e cheios de doença. Na minha
infância – e provavelmente na sua – a grande preocupação das mães era cuidar de
joelhos ralados, braços quebrados, dentes perdidos nas brincadeiras de rua.
Bem diferente do
que acontece hoje. No filme, um menino olha a estante cheia de brinquedos e
diz: “Tenho várias bolas. Não gosto de jogar porque faz cansar”.
Atualmente, avós e
netos vivem a mesma condição de saúde. Podem discutir sobre os mesmos sintomas,
os mesmos efeitos colaterais dos remédios, cirurgias, próteses. Assim como os
idosos, crianças que sequer chegaram à adolescência sofrem de trombose,
artrite, diabetes, hipertensão, triglicérides, colesterol e ácido úrico
elevados.
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Vítima da epidemia de obesidade o garoto chinês de 3 anos com 60 kg |
O primeiro contato
com refrigerante acontece na mamadeira. Depois vêm os biscoitos, os
salgadinhos, os fast foods, os congelados. Uma cultura de imobilidade e acúmulo
de produtos alimentícios de baixa qualidade em despensas abarrotadas fazem as
crianças chegarem aos 70 quilos aos 10 anos de idade.
E aí começa a
cobrança para que elas emagreçam. Uma cobrança cruel porque todo mundo sabe que
perder peso é dificílimo. A cada cinco crianças obesas, quatro permanecerão
obesas na idade adulta.
O único jeito de
impedir que o presente e o futuro das crianças sejam destruídos pelos excessos
é ensiná-las a comer direito desde sempre. Conheço muitos bebês que aprenderam
a apreciar o sabor das frutas e dos legumes desde cedo. Sem pressão, sem
gritaria. Simplesmente aprenderam a viver assim, foram fisgados pelos sabores e
não sabem o que é a vida sem eles.
Na classe média
alta, isso é absolutamente possível. Depende apenas da boa vontade e da cultura
alimentar dos pais – o que nem sempre existe. A parte mais cruel da história
ocorre entre os mais pobres, entre aqueles que não têm escolha.
Nas áreas rurais,
ninguém mais planta para comer nem vive do extrativismo. O filme mostra
supermercados flutuantes chegando aos vilarejos do Pará. Os moradores saem dos
barcos com as sacolas abarrotadas de guloseimas, biscoitos, leite em pó.
Nas periferias
urbanas, as pessoas compram o que podem. E o que podem comprar é sempre o que
há de pior para a saúde. “Os alimentos bons para a saúde (os mais frescos,
pouco processados) são os mais caros e os ruins são os mais baratos. É uma
inversão que precisa mudar”, diz no filme o médico Enrique Jacoby, conselheiro
de nutrição da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Se a obesidade
infantil continuar a crescer, os mais pobres vão morrer primeiro. Os mais ricos
podem durar um pouquinho mais – mas viverão dias sem sentido, sem qualidade.
Não haverá sistema de saúde capaz de arcar com tantos custos. Todos nós –
aqueles que têm bons hábitos alimentares e os que não têm – pagaremos a conta
dessas doenças em forma de impostos.
Nenhuma questão de
saúde é mais urgente que a obesidade. O primeiro passo para promover a mudança
cultural necessária é conhecer o problema de perto. Muito além do peso é uma
tremenda contribuição para isso. Assista e me conte.
A comida de
verdade precisa voltar a fazer parte da nossa vida. Hoje. O que acha?
Conhece alguma criança obesa? O que a sociedade deve fazer para reverter a
maior epidemia infantil da história? Queremos ouvir sua opinião.